Mad
nA estraDa: Conversando com os olhos
Era uma fria manhã de domingo na
cidade de Sucre\Bolívia, quando eu e meu amigo decidimos sair para tomar um
café. Como em uma típica manhã de domingo, haviam poucas pessoas pelas ruas,
bem como poucas alternativas para fazer o desjejum. Por isso eu e meu amigo
decidimos comprar algumas coisas no mercado público e ir até uma pracinha que
havia ali perto. Assim poderíamos, enfim, degustar nosso despretensioso café da
manhã dominical debaixo dos ainda tímidos raios solares.
Entre uma mordida e outra do biscoito
que havíamos comprado, avistamos, do lado oposto ao nosso da pracinha, um
senhor solitário, com vestes bastante batidas, também degustando um biscoito.
Provavelmente aquele senhor deveria morar ali mesmo, naquela pracinha, ou em
algum lugar nas redondezas.
Percebi que entre uma mordida e outra
ele também nos observava com um olhar aparentemente convidativo. Assim que ele
terminou de comer o biscoito, fiz aquele gesto universal que todos fazem quando
querem oferecer algo, ou seja, ergui o biscoito que eu tinha na direção dele
como quem diz: “vai mais uma aí?” Ele fez um discreto sim com a cabeça e eu fui
até o banco onde ele se encontrava sentado e entreguei-lhe o biscoito.
Depois disso, voltei para o banco
onde estava meu amigo e continuei fazendo meu desjejum. Porém, não conseguia
tirar os olhos daquele senhor, e ele também continuava a nos observar. Quando
nos demos conta de que ele não estava bebendo nada, fizemos mais uma vez o
mesmo gesto para oferecer algo, porém, desta vez, oferecemos um iogurte que
estávamos tomando. E mais uma vez ele aceitou fazendo um discreto sim com a
cabeça.
Neste momento, eu e meu amigo nos
levantamos e fomos entregar o iogurte àquele senhor, mas, desta vez, fizemos
diferente. Perguntamos a ele se ele se importaria de dividir o banco e,
consequentemente, a companhia do café da manhã conosco. Mais uma vez ele apenas
balançou a cabeça afirmativamente. Até então ele não tinha dito nenhuma palavra
sequer, nem mesmo um “muchas gracias”.
Da forma mais simples possível, decidi
tentar quebrar todo aquele silêncio e fiz-lhe uma pergunta na qual a resposta
exigiria mais que um simples gesto de sim ou não com a cabeça. Perguntei-lhe
qual era o seu nome. Ele respondeu com uma voz tão baixa que se eu não tivesse
esperando por alguma resposta, provavelmente eu nem a escutaria. Acredito que
ele mais pensou do que vocalizou a resposta. Seu nome era Ernesto. O mesmo nome
daquele revolucionário argentino que morreu anos atrás nesta mesma Bolívia.
Este Ernesto, o senhor da pracinha,
não estava morto, mas o que pude perceber ao olhar fundo nos olhos dele é que
ele também não estava vivendo, estava apenas sobrevivendo. E sobreviver é muito
diferente de viver. Sobreviver é estar morto com a aparência de vivo.
Enquanto tomávamos nosso café, dialogávamos
algumas coisas, se é que era possível considerar aquilo um diálogo. As
respostas eram sempre curtas e com uma voz quase inaudível. Por um momento
cheguei a pensar que aquele homem não deveria falar há muito tempo e, por isso,
suas respostas eram mais com os olhos do que com as palavras. Provavelmente ele
também aprendeu a ver as perguntas nos olhos das pessoas, por isso nos lançava
aquele olhar convidativo como quem dizia, “podem sim chegar até aqui!” Um homem
que aprende a dialogar com os olhos certamente é um homem que já se decepcionou
muito com as palavras. Pelo menos com as palavras faladas. E, assim, seguiu-se
este suposto diálogo por alguns minutos. Sempre com as melhores respostas
chegando dos olhos muito mais do que da boca.
Ao me despedir não falei nada.
Preferi usar a forma de comunicação que parecia ser a preferida daquele senhor,
ou seja, o olhar. E com os olhos tentei dizer: “foi um prazer conhecê-lo”. Como
resposta, recebi o mesmo olhar que ele dirigira a mim quando lhe entreguei o biscoito
e o iogurte. Acho que aquele era o olhar que dizia: “muchas gracias!”.
MAD