Mad nA estraDa: As veias
abertas de uma América que não é a minha
No momento
que digito este texto, percorro um caminho que vai da cidade de Santa Cruz de
La Sierra até Sucre, ambas na Bolívia. Faço este trajeto em um ônibus de
manutenção no mínimo duvidosa, que levará aproximadamente 15 horas para
percorrer um trajeto de pouco mais de 600 km. Isso porque a estrada é bastante
sinuosa e pouco conservada (para não dizer precária), o que faz com que esta
etapa da viagem ganhe uma pequena pitada de emoção.
As várias cruzes colocadas
ao longo do trajeto dão requintes de terror ao enredo da viagem. Só espero que
estas cruzes não representem outros ônibus que tenham, eventualmente, passado
por aqui. Porém, não escrevo para falar das condições do ônibus, das condições
da estrada, tampouco da decoração não muito agradável de cruzes. Escrevo para
falar dos diferentes caminhos que cruzam esta estrada. Caminhos de vida que, de
tão diferentes do meu, às vezes, cometo a besteira de pensar que não são vida,
nem mesmo caminhos.
A imagem de miséria à beira da estrada, e
todos os outros males resultantes de um país que foi covardemente saqueado
ao longo de muitos anos, é algo que não se encaixa no meu conceito de viver. De
qualquer forma, eles vivem. E é exatamente isso o que me fascina. Ver seus
lindos rostos com traços indígenas, suas vestes tipicamente locais, alguns
costumes ainda intocáveis, tudo isso me faz perceber que algo ainda resiste por
aqui. Faz-me perceber que a artificialidade estética, as grifes e os costumes
importados encontram certos problemas em chegar por estes lados da nossa América
do Sul. Tudo bem, isso é muito mais uma questão de condição do que opção, mas
ainda assim consigo ver algo de positivo nisso tudo.
Faz-me ver uma América
diferente, porém autêntica. Uma América que, infelizmente, já não faço mais
parte. Uma América que me foi levada juntamente com os carregamentos de prata e
ouro. Em troca, sobraram este monte de espelhinhos que me mostram nada mais do
que minha ignorante vaidade. Queria, neste momento, poder ser um pouco mais
Sul-Americano, ter traços de índio, ter história no sangue, mas, infelizmente,
não posso. Não posso porque lembro quem eu sou cada vez que me olho em um
daqueles espelhinhos que me foram deixados.
E assim vou seguindo minha viagem.
Porque se no meu passaporte consta que sou um Sul-Americano, o mínimo que devo
fazer é tentar conhecer sobre aquilo que supostamente eu sou. E, embora eu
tenha mais me desencontrado do que me encontrado por estes caminhos, eu prefiro
me perder buscando aquilo que sou do que me achar sendo aquilo que nunca fui.
Obs.: A
foto em questão foi tirada de uma senhora com trajes tipicamente andinos. Ela
trabalhava vendendo doces que carregava em uma pequena cesta. Quando oferecidos
para mim e para meu amigo, decidimos comprar alguns. Aproveitamos para tentar
estender o que seria um breve contato, mas, desde o princípio, percebemos que a
mulher era bastante tímida. Pedimos para tirar uma foto e ela aceitou, sempre
com muita timidez. Acho que os contatos que vão além daqueles exigidos durante
uma simples venda de doces não costumam ser muito rotineiros na vida daquela
mulher. Pelo menos não com estranhos vindo de outros lugares. Mesmo assim, no
momento exato do click da foto, pude perceber um discreto movimento para o que
seria uma pose. Algo muito sutil por trás de um comportamento predominantemente
tímido. Talvez, naquele breve momento, ela tenha se permitido pensar um
pouquinho mais nela mesma e, quem sabe, até tenha
experimentado um segundo daquela leve brisa de felicidade contida na novidade.
E mesmo que os olhos dela ainda se mostrassem cansados, pude ver no fundo deles
que talvez, naquele momento, ela tenha se sentido um pouco mais visível para os
olhos de um mundo que majoritariamente a considera invisível.
MAD
(Foto
tirada por Gilliard Lach)
Tenho muita inveja - exceto da viagem de 16 horas com cabra e vaca e malas cheias de coca. :-)
ResponderExcluirOs olhos del um mundo...
ResponderExcluirUniverso Do Mad compartilha suas reflexões sobre sua viagem e latino-americanidades des-cobertas. Das várias cruzes ao longo da estrada dos des-encontros chega ali e, cesto à mão às10:10 h marcadas no relógio da praça, se encontra frente à frente com ela. Encara a Cruz Andina, viva, a re-velar um Outro Mundo.
Eu tenho a ligeira impressão de que Rafael e Gilliard já se podem ver e re-conhecer neles mesmos uma autenticidade que não tem como dizer que ficou pedida, nem que foi totalmente roubada pelo invasor. Há um tesouro que jamais foi levado daqui das terras do sul nesses 500 anos de matança e insanidade: o verdadeiro amor de um povo que REXISTIU pelo e para o Bem Viver.
Des-encontrar faz parte desse des-aprender as bugigangas para se libertar dos espelhinhos que refletem os fragmentos do que nos forçaram a parecer aquilo que não somos.
Essa foto é algo assim, um momento de des-coberta de si mesmo à presença do Outro, face a face... um momento assim, de AQP - Amérika Que pariu -, um momento de se saber e amar des-invisível...
Eu tenho a ligeira impressão de que sua viagem mal começou e agora essa estrada não tem mais fim... essa do Universo Do Mad ao Intraverso Do Rafael...
Bem Viver, Boa Viagem...