segunda-feira, 2 de julho de 2012

Mad nA estraDa: As veias abertas de uma América que não é a minha




Mad nA estraDa: As veias abertas de uma América que não é a minha

No momento que digito este texto, percorro um caminho que vai da cidade de Santa Cruz de La Sierra até Sucre, ambas na Bolívia. Faço este trajeto em um ônibus de manutenção no mínimo duvidosa, que levará aproximadamente 15 horas para percorrer um trajeto de pouco mais de 600 km. Isso porque a estrada é bastante sinuosa e pouco conservada (para não dizer precária), o que faz com que esta etapa da viagem ganhe uma pequena pitada de emoção.

As várias cruzes colocadas ao longo do trajeto dão requintes de terror ao enredo da viagem. Só espero que estas cruzes não representem outros ônibus que tenham, eventualmente, passado por aqui. Porém, não escrevo para falar das condições do ônibus, das condições da estrada, tampouco da decoração não muito agradável de cruzes. Escrevo para falar dos diferentes caminhos que cruzam esta estrada. Caminhos de vida que, de tão diferentes do meu, às vezes, cometo a besteira de pensar que não são vida, nem mesmo caminhos.

A imagem de miséria à beira da estrada, e todos os outros males resultantes de um país que foi covardemente  saqueado ao longo de muitos anos, é algo que não se encaixa no meu conceito de viver. De qualquer forma, eles vivem. E é exatamente isso o que me fascina. Ver seus lindos rostos com traços indígenas, suas vestes tipicamente locais, alguns costumes ainda intocáveis, tudo isso me faz perceber que algo ainda resiste por aqui. Faz-me perceber que a artificialidade estética, as grifes e os costumes importados encontram certos problemas em chegar por estes lados da nossa América do Sul. Tudo bem, isso é muito mais uma questão de condição do que opção, mas ainda assim consigo ver algo de positivo nisso tudo.

Faz-me ver uma América diferente, porém autêntica. Uma América que, infelizmente, já não faço mais parte. Uma América que me foi levada juntamente com os carregamentos de prata e ouro. Em troca, sobraram este monte de espelhinhos que me mostram nada mais do que minha ignorante vaidade. Queria, neste momento, poder ser um pouco mais Sul-Americano, ter traços de índio, ter história no sangue, mas, infelizmente, não posso. Não posso porque lembro quem eu sou cada vez que me olho em um daqueles espelhinhos que me foram deixados.

E assim vou seguindo minha viagem. Porque se no meu passaporte consta que sou um Sul-Americano, o mínimo que devo fazer é tentar conhecer sobre aquilo que supostamente eu sou. E, embora eu tenha mais me desencontrado do que me encontrado por estes caminhos, eu prefiro me perder buscando aquilo que sou do que me achar sendo aquilo que nunca fui.

Obs.: A foto em questão foi tirada de uma senhora com trajes tipicamente andinos. Ela trabalhava vendendo doces que carregava em uma pequena cesta. Quando oferecidos para mim e para meu amigo, decidimos comprar alguns. Aproveitamos para tentar estender o que seria um breve contato, mas, desde o princípio, percebemos que a mulher era bastante tímida. Pedimos para tirar uma foto e ela aceitou, sempre com muita timidez. Acho que os contatos que vão além daqueles exigidos durante uma simples venda de doces não costumam ser muito rotineiros na vida daquela mulher. Pelo menos não com estranhos vindo de outros lugares. Mesmo assim, no momento exato do click da foto, pude perceber um discreto movimento para o que seria uma pose. Algo muito sutil por trás de um comportamento predominantemente tímido. Talvez, naquele breve momento, ela tenha se permitido pensar um pouquinho mais nela mesma e, quem sabe, até tenha experimentado um segundo daquela leve brisa de felicidade contida na novidade. E mesmo que os olhos dela ainda se mostrassem cansados, pude ver no fundo deles que talvez, naquele momento, ela tenha se sentido um pouco mais visível para os olhos de um mundo que majoritariamente a considera invisível.

MAD
(Foto tirada por Gilliard Lach) 


2 comentários:

  1. Tenho muita inveja - exceto da viagem de 16 horas com cabra e vaca e malas cheias de coca. :-)

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  2. Os olhos del um mundo...

    Universo Do Mad compartilha suas reflexões sobre sua viagem e latino-americanidades des-cobertas. Das várias cruzes ao longo da estrada dos des-encontros chega ali e, cesto à mão às10:10 h marcadas no relógio da praça, se encontra frente à frente com ela. Encara a Cruz Andina, viva, a re-velar um Outro Mundo.

    Eu tenho a ligeira impressão de que Rafael e Gilliard já se podem ver e re-conhecer neles mesmos uma autenticidade que não tem como dizer que ficou pedida, nem que foi totalmente roubada pelo invasor. Há um tesouro que jamais foi levado daqui das terras do sul nesses 500 anos de matança e insanidade: o verdadeiro amor de um povo que REXISTIU pelo e para o Bem Viver.

    Des-encontrar faz parte desse des-aprender as bugigangas para se libertar dos espelhinhos que refletem os fragmentos do que nos forçaram a parecer aquilo que não somos.

    Essa foto é algo assim, um momento de des-coberta de si mesmo à presença do Outro, face a face... um momento assim, de AQP - Amérika Que pariu -, um momento de se saber e amar des-invisível...

    Eu tenho a ligeira impressão de que sua viagem mal começou e agora essa estrada não tem mais fim... essa do Universo Do Mad ao Intraverso Do Rafael...

    Bem Viver, Boa Viagem...

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